Era uma quarta-feira à noite, ela havia acabado de chegar em casa depois de um dia exaustivo e estressante de trabalho. Tomou banho, colocou seu pijama de flanela, beliscou algo na cozinha e voltou para o quarto. Se jogou na cama como quem corre em direção a um esperado abraço, pegou seu diário em capa de couro preta que sempre ficava na mesa de cabeceira acompanhado de uma caneta tinteira, aguardando o momento em que ela chegaria para lhe contar como havia sido o seu dia, na esperança de que algo bom e novo tivesse acontecido, mas sempre se decepcionava. Suas páginas sem linhas estavam preenchidas com dores, sofrimentos, raivas e frustrações. Ele era o lugar onde ela depositava seus desabafos diários, acreditando que assim, pudesse esvaziar um pouco o peito para aguentar o dia seguinte.
Porém hoje, ao pegá-lo para realizar o seu rotineiro ritual de descarrego, ela resolveu ler as páginas anteriores, coisa que nunca fazia por saber que reviver tudo aquilo, alteraria o propósito de se sentir livre daquele peso angustiante. Ao folhear o diário, ela cai no choro ao perceber como a vida lhe havia virado às costas e como ela tinha tido uma vida infeliz até ali.
De repente ela se pega sem entender pra que eternizar tudo aquilo. Afinal, pra que lembrar das coisas ruins que nos aconteceram? Pra que criar meios de reviver tanta dor? Ficar mais forte? Aprender com os erros? Desculpa, mas isso mais parecia sadomasoquismo. Não é assim que ela queria lembrar da sua vida. E se um dia aqueles caderninhos fossem a única fonte de lembranças da sua vida quando a velhice chegasse, e alguma doença como Alzheimer pudesse lhe atingir? Definitivamente não era como uma velha frustrada e amargurada que ela pretendia terminar os seus dias.
Foi aí que resolveu mudar, pegou o diário que estava lendo e todos aqueles que ela guardava no armário, os embebeu de álcool e os jogou acompanhados de um palito de fósforo aceso, em uma lixeira do seu quarto, bem como aquelas cenas de filme, onde a mocinha de coração partido, queima as cartas do namorado traidor.
Após ver seu passado virar cinzas, ela pega um diário novo em cima da escrivaninha, este com a capa de couro azul marinho, e volta para a cama decidida, daquele dia em diante, ao chegar do trabalho com todo o estresse e exaustão, ela pegaria aquele caderninho e escreveria como ela queria que o seu dia tivesse sido, escreveria sobre como ela havia se interessado pelo colega novo de trabalho, e para onde o chamou pra sair depois do expediente, contaria das férias que tirou, e como Londres era linda vista da janela do avião à noite.
Por mais que ela soubesse que aquilo tudo não havia acontecido de verdade (pelo menos não ainda), ela se sentia bem ao se imaginar vivendo tudo aquilo, e algum tempo depois, ela conseguia até sentir o vento geladinho batendo no rosto na sua ida à Nova Zelândia para conhecer suas lindas montanhas.
Era como se as possibilidades se abrissem e ela pudesse descobrir coisas novas sobre si, coisas que gostaria de fazer, mas que todas as frustrações vividas não permitiam que ela ao menos parasse pra imaginar a infinidade de coisas que existia fora do caminho casa-trabalho, coisas essas, que poderiam melhorar o seu dia, a sua semana, a sua VIDA.
Ela estava tão acostumada a ter um dia terrível, a reviver tudo aquilo antes de dormir ao transferir para o papel o seu dia, que não percebia o quanto aquilo lhe fazia mal, e como ela estava conformada em passar o resto dos seus dias assim. Mas agora? Bom, agora não mais.
E se um dia ela perder a memória, por um motivo desconhecido ou não, ao ler aquelas páginas ela se sentirá a pessoa mais feliz e realizada do mundo. No fundo vai saber que algo daquilo (ou tudo), pode não ter acontecido, mas será como ler um conto de fadas e se imaginar sendo a princesa que terá seu “feliz para sempre” no final da história.