Manoel de Barros, o primeiro encontro e uma carta

No ano em que as livrarias recebem a primeira coletânea das poesias de Manoel de Barros, compartilho impressões do meu primeiro contato com a obra do poeta e uma carta nunca entregue.

Meu Quintal é Maior do que o Mundo é o nome da primeira antologia do poeta Manoel de Barros, lançada após a sua viagem definitiva para passarinho no final do ano passado. Morto em novembro de 2014 aos 97 anos, o poeta conhecido por revelar as (in)significâncias e grandezas do ínfimo em seus versos sobre rãs, pedras, formigas, objetos como o abridor de amanhecer e o esticador de horizonte, e outros inutensílios, deixou mais de 25 obras publicadas em 70 anos de dedicação à palavra. Lançada pelo selo Alfaguara, da Editora Objetiva, em março deste ano, a antologia reúne em 168 páginas, poemas de diversas fases do escritor.

“Meu quintal é maior que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios: amo os restos
como as boas moscas”.

Em Manoel e com Manoel eu descobri a essência dos
delírios de cada palavra, frase, verso, e a (in)utilidade da poesia. Publico abaixo um texto que redigi na ocasião de sua morte e uma carta escrita meses antes, que nunca chegou às mãos do poeta.

Um encontro na despedida

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O primeiro encontro aconteceu em 2005, às vésperas do vestibular para Jornalismo. A leitura por obrigação a fim de responder umas e outras questões e interpretar cada frase, cada linha, como esperava a instituição, tirou todo o sabor da obra. Santa Ignorância! Como se poesia fosse artigo definido. Quando é mesmo objeto direto sem complemento e agente. Manoel não gostava de ver os seus livros “despencando” nos vestibulares. Disse ele em entrevistas (as poucas que concedeu). E voltou a dizer no documentário “Só Dez por Cento é Mentira”. Após esse encontro torto nos esbarramos algum tempo depois, por acaso, no corredor da biblioteca da faculdade. E naquele dia – livre da obrigação – retirei o livro do vestibular lá de 2005 da prateleira e nunca mais parei de ler. Meu primeiro mergulho no universo do Manoel foi no rio-chão-pântano-cisco-pedra das ignorãças do mato-grossense, que tinha a natureza colada nele. Até hoje me lembro da cobra de vidro mole que fazia a volta em torno da casa. Dei risada com a sua mania de desnomear coisas e desinventar objetos. Vi a chuva atravessar um pato pelo meio. E sonhei usar algumas palavras que ainda não tinham idioma (e ainda não tem) com desejo de sofrer decomposição lírica até o mato sair da minha voz. E pensei: quem me dera eu pegar na voz de um peixe, como Manoel sabia fazer, e ganhar vocação para “apalpar as intimidades do mundo”. O seu silêncio feroz me fascinou. E me fascina.

Com Manoel aprendi:

a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.

Com Manoel aprendi muitas coisas.

Vai o homem, vem a lenda. Lenda do gerundivo latino legenda, literalmente, “a serem lidos”. Manoel foi e será sempre (re)lido.

Manoel de Barros Poeta Brasileiro  (2)

Deixo aqui minha homenagem ao maior poeta. Um poema extraído do meu primeiro livro Do Universo Rabisco o Mundo, lançado em 2011.

Tributo a Manoel de Barros com direito a João Guimarães Rosa

Nutrir esse amor por pedra
Contemplar insignificâncias
Observar as grandezas do ínfimo
No caramujo com seu comportamento de eternidade
Ter mania de pedra
Ver nela tantas vantagens
Como o passarinho que nela amola o bico
Pra depois desaparecer de cantar
É tudo que vejo
Tudo

Nesse concerto a céu aberto para solos de ave.

Sublime

Obrigado por tudo, Manoel.

Manoel de Barros Poeta Brasileiro  (1)

A carta

Caro Senhor Manoel de Barros, “nosso Poetinha maior”,

Gostaria de ter escrito esta carta para o senhor de próprio punho, mas pela qualidade caligráfica dos médicos que me apega e não desgarra, para me fazer um pouco mais legível e aspirar-me inteligível, sinto-me incumbido de redigi-la fazendo o uso das máquinas de prensar palavras nas folhas.

Primeiramente, agradeço-lhe por ter sido o “nosso poeta”: Poeta do ínfimo de todas as grandezas despercebidas, distraídas no corpo da natureza. Poeta dos solos de pássaros nos concertos a céu aberto. Poeta das cobras de vidro mole que contornam e abraçam as casas. Poeta maior.

Sua palavra me iluminou ao desenhar aquela imagem do vidro mole atrás da casa. Depois disso, meu olho também ficou distorcido de ver o mundo. Foi nesse momento, atrás da casa, que descobri que o esplendor da manhã não se abre com faca e que é preciso sim desver o mundo.

Foi lá. Observando a imagem do vidro mole atrás da casa que eu comecei, iluminado pelo poeta, a adoecer a palavra e delirar o verbo. A me fazer menos pobre de limitações.

Foi lá. Aprendendo a tornar inúteis os objetos que eu iniciei minha infância literária e me encantei com as (im)possibilidades da língua do mundo e com os gostos de tudo na língua, logo que alcancei o meu próprio cotovelo. Sim, aprendi a chegar lá. Onde? Nos lugares que por vias comuns não se chega. Em locais onde a frase milimetricamente calculada não alcança. Em planícies que não existem. Nas paisagens não traduzidas pela matemática abstrata aceita. Cheguei longe demais em lugar algum.

Foi lá. Foi nos seus versos que descobri que ando e andarei sempre – é o que todos os caminhos apontam – completo de vazios. É que o meu órgão de morrer me predomina. E que estou sem eternidades.

Foi lá. Não descobri tão cedo quanto o nosso poetinha, que aos 13 anos, percebera o prazer das leituras não na beleza das frases, mas na doença delas. Demorei um pouco mais. Aos 15, ao mergulhar na música, tive minha primeira distorção lírica. Andei dissonante por muito tempo, hoje, ainda, e sempre, talvez. Mas a iluminação, o encanto das palavras, esse pote de delírios, foi o poeta quem o abriu para mim. Na época, era eu ainda vizinho do grande amigo do senhor, o homem do sertão João Guimarães Rosa. Fui criado no interior de Minas Gerais, pelas cidadezinhas de Paraopeba e Caetanópolis, à aproximadamente 30 km de Cordisburgo.

Foi lá.

E sim. Eu acredito no poeta quando diz “Só dez por cento é mentira”. E é verdade poeta, de resto é invenção.

Peço licença para delirar uma de minhas iluminações. A primeira estrofe do poema “Pronunciamento (Entoada)”, que inaugura as poesias do meu livro Fuga das Horas, lançado em março de 2015:

O que não tenho na vida
Eu invento
Nesses cadernos
Faço seco cimento

Um dia sentado ao seu lado pitando um cigarro de “paia” e tomando um “cafezin”, aperfeiçoarei minha exploração das insignificâncias dentro daquilo a que chamas “lugar de ser inútil”.

É isso poeta.

Obrigado.

Um grande abraço,
De uma criatura iluminada pelo conjunto da tua obra,
Raphael Rocha

Vai lá Manoel virar o que sempre foi: Passarinho, pedra, árvore, sapo, asa, criança, objeto de ser inútil, silêncio, rio… rio sem fim.

Manoel de Barros – ★1916 – ✟ 2014

Manoel de Barros Poeta Brasileiro  (3)