Ideologia de gênero existe? Sim: mas sempre existiu.

 

A polêmica acerca da inclusão de questões de gênero nos planos para a educação é descabida e os argumentos utilizados por quem refuta essa inclusão são infundados.

O que é gênero?

“Gênero” é um campo de estudos interdisciplinares que tem como categoria central de análise identidades e representações de gênero. Por vezes, estes estudos são oferecidos em conjunto com estudos sobre sexualidade, e as disciplinas abordadas são variadas; examina-se gênero e sexualidade em relação a áreas como linguagem, história, sociologia, antropologia, mídia e direito, dentre outras. As formas como outros eixos de identidade – tais quais raça, etnia, localização, classe, nacionalidade e deficiência – se correlacionam com as categorias gênero e sexualidade também são parte intrínseca das análises engendradas por quem é do campo.

Algumas pessoas que andam proferindo opiniões contrárias à inclusão de informações sobre gênero e sexualidade nos planos nacionais de educação vêm demonstrando um profundo desconhecimento sobre estes estudos. Isto é compreensível, afinal a disciplina é relativamente recente. Entretanto, os argumentos utilizados também demonstram um tremendo obscurantismo a respeito do que realmente significa “ideologia”.

As imagens abaixo foram selecionadas sem muito critério: simplesmente fiz uma pesquisa no Google e escolhi as quatro primeiras notícias listadas.

Os impropérios contidos nestas imagens parecem ser fruto de um equívoco em relação aos conceitos “teoria” e “ideologia”. O que os opositores constroem como “inclusão da ideologia de gênero nos planos de educação”, nós, seus defensores, mais adequadamente descreveríamos como “inclusão de conhecimento de noções teóricas provenientes de estudos de gênero nos planos de educação”.  Teoria, não ideologia; há diferenças – não particularmente sutis – entre um conceito e o outro.

Teoria e ideologia

Ideologias são sistemas de ideias e ideais que dão base a teorias e modelos políticos. Já teorias são conjuntos de princípios fundamentais de uma ciência, que buscam transmitir noções gerais acerca de alguns aspectos da realidade. Ou seja, teorias também são sistemas de ideias – mas teorias se propõem a remover ideais de suas análises para poder examinar, e quiçá explicar, certos fenômenos.

Para iluminar esta distinção vou me utilizar de um exemplo histórico que ilustra o conflito entre teoria e ideologia. Essa breve historinha não foi escolhida por ser exatamente análoga ao que está sendo debatido agora – não me escapa que a exatidão oriunda de cálculos matemáticos e as possibilidades interpretativas advindas dos estudos sociais não sejam necessariamente equivalentes. No entanto, visto que uma das personagens desta antiga narrativa acontece de ser a mesma da situação atual (e representando o mesmo papel, não menos), vale a reflexão.

Hoje sabemos que a certeza teórica de que a Terra era o centro do Universo não passava de um devaneio ideológico de uma era em que a humanidade se compreendia como peça principal da criação. Nicolau Copérnico revolucionou a ciência e a sociedade ao oferecer a teoria de que, na verdade, é a Terra que gira em torno do Sol. Esta teoria, hoje irrefutável, já havia sido previamente especulada por uma série de outros pensadores e cientistas, e mais tarde foi defendida por Galileu Galilei até sua morte (que foi causada, em grande parte, por causa desta defesa). Copérnico e Galilei, eu imagino, estavam motivados a demonstrar a organização dos corpos celestes por devoção ao avanço do conhecimento, e não por bandeira ideológica, ainda que eles tivessem uma. (E me pergunto se os oponentes da teoria heliocêntrica também tenham criado o equivalente medieval de memes clamando pelo fim da “ideologia da matemática”…)

É certo que o apego ignorante a ideologias informa e atrapalha o desenvolvimento teórico sobre fenômenos existentes; isso é ciência malfeita. Teoristas sérios e comprometidos com o método científico geralmente estão bem preparados para o advento de terem suas ideologias abaladas por desenvolvimentos na teoria. Copérnico era um cônego da instituição que refutou suas descobertas, afinal de contas – a mesma instituição que, um bom século depois, executou Galilei por defender a teoria proposta por Copérnico, e a mesma que, na nossa era, vem emitindo opiniões absurdamente mal informadas sobre gênero. Já o desenvolvimento teórico sobre certos fenômenos pode vir a abalar, ou até mesmo desmantelar, certas ideologias – e quando a ideologia sendo abalada é uma que oprime, bom, isso é ciência muito bem-feita.

O que é ideologia de gênero?

A resposta para essa pergunta, como tem ficado evidente no debate corrente, varia de acordo com o grau de conhecimento do respondente acerca de teorias provenientes de estudos de gênero.

Quem se opõe à inclusão de questões de gênero no plano de educação insiste que a ideologia de gênero implicaria numa mudança do paradigma social vigente, e a respeito disso eles não estão errados: nós, os proponentes desta inclusão, de fato visamos mudanças sociais significativas. No entanto, disparates como os que podem ser observados nas imagens acima tendem a ser proferidos justamente por quem não faz a menor ideia do que essas mudanças sequer signifiquem, tampouco dos motivos pelos quais as consideramos importantes.

A “ideologia de gênero” seria mais aptamente compreendida se pensássemos nela como a “ideologia do questionamento do binarismo homem/mulher como forma exclusiva de se pensar a respeito de gênero”. Para os estudiosos da área, identidade e sexualidade são parte de construções sociais e culturais, e não apenas fatores biológicos. Quero colocar ênfase no ‘apenas’ para deixar claro que estudiosos de gênero – e talvez até mais do que pesquisadores de outras disciplinas – atribuem, sim, o valor e a importância devidos à biologia e aos corpos das pessoas.

Acreditamos que os seres humanos nascem “neutros”, e que nossas identidades de gênero e orientações sexuais são moldadas ao longo da vida, por uma série de causas que incluem biologia e construtos sociais, e que variam de pessoa para pessoa, e de contexto para contexto. Assim, não fica difícil de compreender que tratar gênero e sexualidade como conceitos fluídos e socialmente mutáveis não é o mesmo que querer impor um novo modelo no qual as diferenças entre homens e mulheres devam ser erradicadas, tampouco que queiramos caminhar na direção de uma sociedade hegemonicamente andrógina. Pelo contrário: quem estuda e pensa gênero desta forma propõe novas maneiras de ser e de pensar nossas identidades, de forma mais livre e menos opressora para quem não se encaixa nas normas mutuamente exclusivas que a divisão rígida entre masculino e feminino implica.

Podemos dizer que estudiosos de gênero tem uma ideologia? Claro que sim. O que os detratores desta forma de pensar parecem não perceber é que eles também têm uma “ideologia de gênero”, e que ela é a ideologia vigente no contexto sócio-cultural em que nos encontramos. Esta ideologia do ‘binário de gênero’ afirma que existem dois gêneros distintos (homem e mulher), e dois gêneros distintos apenas, e que quaisquer desvios comportamentais desta ordem são perversões ou até mesmo patologias. Esta ideologia (que é a vigente) também tende a equacionar gênero (homem/mulher) com sexo biológico (corpos com cromossomas e órgãos sexuais de machos ou fêmeas da espécie) e orientação sexual (hetero-, homo- e bissexualidade, para citar as mais destacadas). Dentro desta verdade ideológica, fêmeas se tornam mulheres que sentem desejo por homens, e machos se tornam homens que sentem atração por mulheres. Mas acreditamos, de fato, que não há nada de errado com estas permutações específicas de biologia/identidade de gênero/orientação sexual – evidência disso é que a autora deste texto – uma estudiosa do campo – aconteceu de nascer fêmea, tornou-se mulher, e hoje é casada com um homem: e nem por isso sofre, ou sofreu preconceito da parte dos “ideólogos” desta nova concepção de gênero.

A nossa “ideologia de gênero” acomoda a atual tanto quanto propõe que outras possibilidades combinatórias entre corpos, identidades e desejos sejam tratadas com dignidade e respeito. O que a ideologia de quem se dedica à progressão de teorias acerca de gênero questiona é precisamente a rigidez da ideologia do binário. A teoria de gênero não propõe que erradiquemos os conceitos “homem” e “mulher”, ou que corpos e biologia não importem, ou que todos sejam andróginos e pansexuais. O que sabemos é que a intransigência e a manutenção desta separação absoluta também são ideológicas.

Nossa ideologia de gênero é a da liberdade; já a vigente exclui muito mais do que acomoda. Por isso vou terminar este texto com a uma pergunta que nos convida a fazer uma séria, e necessária, reflexão: os que tem tanto medo da dissolução destas normas rígidas e opressoras do binário de gênero estão querendo conservar o que para quem?

Joanna Burigo